Do estereoscópio aos óculos de realidade virtual

Interseções entre Psicologia e Realidade Virtual

Os textos que tratam da história da Realidade Virtual usualmente consideram que o termo Realidade Virtual foi cunhado em 1986 pelo informático e músico Jaron Lanier para fazer referência a ambientes sintéticos tridimensionais que permitem simular a realidade. A trajetória da Realidade Virtual começa, porém, muito antes, e poderíamos dizer que está conectada à Psicologia desde seu início através da procura por compreender como criar outras realidades jogando com apercepção, evocando emoções, simulando situações e criando contextos para viver experiências estéticas que transformam.

Nossa intenção aqui é realizar um breve voo de pássaro da história da Realidade Virtual, detendo-nos em alguns dos sonhos que impulsionaram seu desenvolvimento e estabelecendo conexões com o presente. Não temos a pretensão de oferecer dados de uma investigação histórica a toda regra. O que propomos é mais um passeio pela memória e pelas ideias de visionários que puderam adiantar-se a seu tempo para que nós, hoje, possamos avançar na experimentação e na realização de suas invenções. Com isto pretendemos abrir espaço para uma compreensão mais ampla das rotas pelas quais a Realidade Virtual entra na Psicologia e como se abrem as principais vertentes terapêuticas que a RV possibilita no momento, a Terapia de Exposição com Realidade Virtual baseada na simulação de realidades à Corporificação da Experiência e o potencial do Estado de Fluxo.

Enganar o cérebro: os primeiros passos

Para começar, podemos remontar ao Mirroscope, o estereoscópio desenhado por Charles Wheatstone em 1833. O invento de Wheatstone, desenvolvido com interesse científico, se baseia na hipótese de que se fornecêssemos ao cérebro duas imagens parecidas, mas com um a ligeira “disparidade”, da mesma forma como fazem nossos olhos, se conseguiria um efeito de visão tridimensional. Wheatstone pensou que poderia conseguir um efeito similar à visão binocular humana se se refletissem duas imagens em dois espelhos colocados em ângulo em frente ao observador, enviando cada uma das imagens a um olho.

Wheatstone fue desarrollado con fines científicos

O estereoscópio de Wheatstone foi desenvolvido com fins científicos

Pouco depois, em 1937, William Gruber patenteou o que chamou “View Master”, um pequeno dispositivo que se baseava na teoria de Charles Wheastone e que Gruber idealizou para levar ao público as imagens estereoscópicas (efeito 3D gerado ao mostrar imagens distintas para cada olho). O View Master se comercializou como jogo durante décadas e seguramente muitos de nós tenhamos cruzado com algum exemplar em alguma se suas formas. Tanto o esteroscópio como o View Master se baseiam no princípio da percepção de profundidade. Ao observar as imagens idênticas enfocadas de diferentes ângulos através do dispositivo, nossos olhos enviam ao cérebro informação “falsa” de que nos encontramos ante uma cena de três dimensões.

View Master(Sawyer's)

View Master, fabricado de 1938 a 1944 pela Sawyer’s Inc.

“Enganar” o cérebro é o fundamento de investigações que estão sendo realizadas atualmente com Realidade Virtual orientadas para a reabilitação neuropsicológica e motora. Nas intersecções com a Psicologia, essa orientação se materializa, por exemplo, em estudos sobre o tratamento da dor crônica e dos transtornos de conduta alimentar. A base é remapear os circuitos neuronais aproveitando a abertura que o “engano” gera nos esquemas disfuncionais ativados no cérebro. Os trabalhos de Wheastone abriram um rastro que nos conecta com teorizações recentes e complexas que concebem a Realidade Virtual como uma tecnologia de simulação que interrompe os mecanismos de codificação que o cérebro utiliza para gerar previsões que garantam a sobrevivência. Uma possível interpretação para pensar os efeitos da imersão com RV poderia ser que o deslocamento de contexto ou mudanças nas representações corporais abrissem espaço para uma recodificação que pode operar tanto no nível físico como psíquico.

Essa perspectiva baseada na interrupção dos mecanismos preditivos não é nova e podemos encontrar sua marca, por exemplo, na neurologia e na neuropsicologia. Um exemplo de uso da Realidade Virtual para tratar para tratar a dor do membro fantasma em pessoas que sofreram amputação e problemas associados ao movimento. Se trata de uma atualização da antiga técnica da Caixa de Espelho de Ramachandran, uma caixa com duas aberturas separadas por um espelho: o paciente introduz o membro amputado em uma das aberturas e o membro são no outro lado. O espelho reflete o membro íntegro de maneira que o paciente pode movê-lo gerando no cérebro a ilusão de mover o membro amputado.

Caixa de espelho para tratar a dor do membro fantasma idealizada por Ramachandran

O uso de tecnologias de simulação para tratar a dor do membro fantasma pode combinar Realidade Virtual com Realidade Aumentada e aprendizagem máquina. Nos laboratórios de neuroreabilitação dirigido pelo engenheiro biomecânico mexicano Max Ortiz Catalán, os pacientes veem em uma tela um braço virtual no lugar do membro amputado e com a ajuda da realidade aumentada controlam o que ocorre no ambiente virtual com pequenos movimentos musculares. Embora sejam necessários mais estudos controlados e com amostras maiores, os resultados que se obtêm com Realidade Virtual e Aumentada na dor do membro fantasma e na dor neuropática são esperançosos. A ideia é que a intervenção possa reorganizar o padrão neural que se produz na região do córtex sensoriomotor implicada em sentir e mover o membro depois da amputação, levando o cérebro ao momento anterior do trauma, quando não havia dor.

A reabilitação de pacientes paraplégicos com Realidade Virtual e Aumentada é outro campo no qual se cruzam essas discussões. Os pacientes aprendem a treinar suas ondas cerebrais para fazer caminhar um avatar na cena virtual, recuperando sensibilidade nos membros paralisados e alguns movimentos. Há muito que se investigar e compreender neste campo, que já conta com estudos e trabalhos clínicos que obtêm resultados significativos. Para a psicologia, esses trabalhos estabelecem pontos de contato com caminhos de teorização preocupados com as especificidades da imersão com Realidade Virtual.

Reabilitação de pacientes paraplégicos com Realidade Virtual pelo cientista brasileiro Miguel Nicolelis

Na saúde psicológica a investigação neste campo é ainda recente, com trabalhos promissores no campo da dor crônica e no tratamento dos transtornos da conduta alimentar. A ideia é que a interrupção dos mecanismos de codificação preditivos do cérebro se possa aproveitar tanto para a atualização da representação corporal como para uma redescrição do sujeito. Para eles, a Realidade Virtual oferece mecanismos de simulação que podem ser úteis de uma perspectiva terapêutica: o body swapping (intercâmbio de corpos) e o deslocamento do marco de referência. Com uma matiz narrativa, essas tecnologias começaram também a ser experimentadas para estudar aspectos sociais como assédio moral escolar ou o racismo. Os movimentos da pesquisa assinalam a necessidade de se compreender como a imersão com Realidade Virtual pode afetar a percepção tanto em nível físico como psíquico, sendo necessário para isso compreender como o cérebro processa dados quando está no entorno virtual, assim como novas perspectivas teóricas.

Simuladores: ambientes para a aprendizagem

Desde o estereoscópio, diferentes dispositivos foram desenvolvidos para gerar imagens tridimensionais e ambientes imersivos, alguns com finalidades muito específicas como os simuladores de voo, que iniciaram o rastreio dos entornos virtuais para treinamento. De fato, a construção do primeiro simulador de voo foi o seguinte passo importante na história da Realidade Virtual. Em 1929 om instrutor de voo Ed Link criou seu Link Trainer ou Blue Box, um simulador de voo mecânico que serviu ao treinamento de centenas de milhas de pilotos durante a segunda guerra.

Link Trainer ou Blue Box, o primeiro simulador de voo

A simulação para a aprendizagem de habilidades é a base das terapias que expõem a Realidade Virtual como uma tecnologia de simulação de entornos sintéticos. Mesmo se o exemplo mais conhecido desse uso sejam as Terapias de Exposição com Realidade Virtual (VRET), outros caminhos estão sendo explorados como a simulação de situações para aquisição de habilidades para a vida cotidiana pensadas para pessoas com incapacidade cognitiva, por exemplo, assim como ambientes para reabilitação neuropsicológica.

A questão da simulação não está limitada ao desenvolvimento de entornos de aprendizagem: teorias recentes situam a simulação sintética como um paralelo das simulações dinâmicas que o cérebro gera do entorno, do eu, e no entorno.

Realidades paralelas: experiências estéticas

A ideia de poder entrar numa realidade paralela tem um longo percurso na ficção científica. Na literatura, a primeira obra que se aproxima ao que hoje compreendemos como realidade virtual foi o conto de ciência-ficção “Os óculos de Pigmaleão”, publicado em 1935 por Stanley G. Weinbaum. No relato, organizado de forma não linear ao redor do leitor buscando um efeito de primeira pessoa, o invento de um certo Prof. Ludwig permite experimentar o mundo através de uns óculos, um mundo sensorial como odores, tato e gosto. Em 1950 o cineasta Morton Heilig começou a desenhar o Sensorama, que ficaria conhecido posteriormente como o primeiro sistema de realidade virtual passiva. Além de imagens tridimensionais, o Sensorama incluía uma cadeira em movimento, vento e odores, avançando na ideia do sentido de presença. Heilig chegou além disso a desenhar óculos estereoscópicos com som aos que chamou Telesphere Mask.

Sensorama, o “cinema do futuro” projetado por Morton Heilig e apresentado por ele mesmo

O primeiro capacete, colocado no teto

No terreno da ciência e tecnologia, porém, um passo sólido se deu em 1958 quando a empresa Philco Corporation desenhou um sistema com ambientes sintéticos que podiam ser acessados mediante um capacete que captava movimentos que os usuários realizavam com suas cabeças. Apesar disso, o invento ficou conhecido como o primeiro capacete de realidade virtual (head mounted display – HMD), precursor dos que se utilizam hoje, foi um dispositivo que Ivan Sutherland apresentou em 1968 e que ficou conhecido como “Espada de Democles” por seu aspecto, já que pelo peso o dispositivo ficava pendurado no teto. Podemos vê-lo no vídeo a continuação do artigo original publicado em Fall Joint Computer Conference.

Espada de Damocles, o primeiro “capacete de Realidade Virtual” (1968)

O desenvolvimento das tecnologias móveis permitiu recentemente que a Realidade Virtual ultrapassasse os laboratórios para entras na consulta. Atualmente existem várias plataformas de Realidade Virtual para terapias baseadas em óculos para smartphone, com cenários distintos para diferentes transtornos, de fobias específicas a transtornos da conduta alimentar, passando por Mindfulness e ambientes especialmente projetados para uma avaliação neuropsicológica com maior controle de variáveis e maior valor ecológico que as provas de lápis e papel.

O mito da caverna atualizado em mundos imersivos

Em outra linha distinta do capacete de Realidade Virtual foram desenvolvidas as CAVEs (CAVE Automatic Virtual Environment), salas imersivas nas quais as paredes, o teto e o solo são telas de projeção de gráficos tridimensionais com as quais os usuários podem interagir com a ajuda de dispositivos hápiticos. As CAVEs modernas podem incluir sensores de rastreamento nas paredes, som distribuído em diferentes ângulos e vários projetores. A sensação de imersão pode ser muito intensa.

A primeira CAVE foi desenvolvida por uma equipe de pesquisadores na Universidade de Illinois (Chicago), e apresentada na conferência de SIGGRAPH de 1992. Atualmente as CAVEs se utilizam principalmente para pesquisa em diferentes disciplinas como, por exemplo, na geologia ou na medicina. O nome CAVE faz alusão ao mito da caverna de Platão, que ressalta que o que os olhos veem é uma ilusão que não corresponde à realidade.

Mundos simbólicos personalizados e atenção conjunta

Em saúde mental, o Mundo de EMMA (Engaging Media for Mental Applictions) se utiliza de uma sala imersiva para terapia psicológica com Realidade Virtual para o tratamento de transtornos emocionais. Sem que se trate de uma CAVE, o sistema utiliza uma tela de tamanho grande em uma sala de imersão em que o paciente constrói, com ajuda do terapeuta, entornos virtuais com valor simbólico personalizado. O ponto de partida do Mundo de EMMA é diferente de outros sistemas de Realidade Virtual terapêuticos. O que caracteriza o Mundo de EMMA é principalmente a flexibilidade simbólica para a construção conjunta de entornos e ambientes terapêuticos, o que tem permitido seu uso com resultados positivos em transtornos nos quais as emoções assumem um papel central, estendendo-se ao tratamento de Estresse Pós-Traumático em crianças e adultos.

A flexibilidade dos entornos terapêuticos da Realidade Virtual é um dos aspectos relevantes para o psicólogo, tanto no que se refere à configuração de parâmetros de exposição, à possibilidade de compor os entornos com elementos valiosos e significativos para o paciente ou no que diz respeito à possibilidade de incluir biosensores que respondam em tempo real à cena.

Terapia com avatares para psicoses

A construção conjunta do elemento terapêutico com valor simbólico é também o foco na terapia com avatares conduzida por investigadores situados em diferentes países, como Inglaterra e Canadá. A Terapia com Avatar vem sendo utilizada desde 2008 por Julian Leff para que o paciente possa dialogar com suas alucinações auditivas persistentes através de representações gráficas criadas conjuntamente com o terapeuta. O site Avatar Therapy contém informação atualizada sobre estudos recentes, incluindo um estudo controlado com 150 sujeitos com alucinações persecutórias. O avatar é construído conjuntamente entre o paciente e o terapeuta adaptando a voz e o rosto, e o paciente interage com o avatar através de uma tela. Durante a sessão o terapeuta interage com o paciente através da plataforma, ajudando-o a gerar estratégias para enfrentar as alucinações e mudar o padrão relacional que manteve com elas.

Terapia com avatar no King’s College, em Londres

No Institut Phillipe Pinel (Canadá), Aledander Dumais utiliza a Realidade Virtual para a Terapia de Avatares. Usando óculos de RV para smartphone, pacientes que apresentam esquizofrenia enfrentam suas alucinações auditivas materializadas em avatares em um ambiente virtual. O paciente se expõe a suas alucinações em companhia de seu psiquiatra, adquirindo habilidades para relacionar-se com elas de maneira mais efetiva. Os resultados do estudo piloto conduzido por Dumais foram significativos: as alucinações diminuíram o ou deixaram de ser tão intrusivas.

Terapia com avatar para esquizofrenia com Realidade Virtual

A realidade Virtual é em si mesma terapêutica?

Flexibilidade, controle de variáveis, sentido de presença, incorporação de biossensores e valor simbólico são alguns dos elementos necessários para que o psicólogo possa utilizar a Realidade Virtual como uma ferramenta terapêutica. Em si mesma, a Realidade Virtual é uma ferramenta a mais com a qual o profissional de saúde mental pode contar. Na Psicologia, é uma ferramenta que pode ser incorporada em diferentes contextos e quadros terapêuticos.

A presença do psicólogo é necessária na sessão de Realidade Virtual. Depois de tudo, colocar os óculos na sessão supõe para o paciente estar imerso em um espaço dentro de outro espaço. A segurança do espaço terapêutico e o vínculo com o psicólogo que fica “fora” mas “presente” são fundamentais para que as disrupções e estruturas no plano psicológico possam ser utilizadas como aberturas e oportunidades para a ressignificação na conversa terapêutica.